Não seja bom. Seja excelente!
4 de março de 2016Luc Bouveret – o momento presente
6 de março de 2016Andei a vagar, andei sem pressa. Andei-me a parar, sem hora, sem prazo. Avistar a vista primeira, sentir o primeiro perfume, o primeiro barulho, meu piscar moroso feito soneca. E somente vi que queria a vida assim, francamente.
Era deixar de canto os sofismas, a profissão, o título que lhe dão, ou mesmo o nó bem dado na gravata. Era deixar-me, como se os cabelos fossem alforriados para voarem com o vento que precede a noite. Como tanto faz, como tanto fez, o que seria, o que fui, todos trocados pelo conforto de pôr os pés no banco de madeira. Era tal largueza do tipo que desabotoa a camisa até o meio do peito, do tal desvario que assobia sozinho. Mais ou menos assim.
Assim, de um jeito menino, de um jeito moleca, que quebra regras. Seguir descalço a trilha das formigas, ou o alto da calçada. Queria simplificar ao ponto de bebericar três vezes mais aquele café. De voltar para cama, soltar três palavrinhas que descortinam a covinha daquela moça. Talvez me atrasar mais meia hora longa por dedilhar uma música nova no violão, ou me empolgar com dois versos pueris em um papel jogado na mesa. Literalmente sair comendo chocolate no café da manhã.
Modéstia que faltava. Que apaziguava. Que soprava a alma. Modéstia no trato, no tato, no talo. Já me parecia tão ignorante correr com o relógio, xingar aquela linda pessoa que liga todo dia para casa porque precisa daquele trabalho. Já me parecia ignorante, ignorar. Ignorar tanto, coisas, coisinhas. Do cadarço ao sonho de uma senhora-menina. Atribular-me com o que não consegui realizar, penalizar-me, culpar-me, vitimar-se, eram palavrões esculpidos na mina néscia atitude para comigo.
E o que era para ser, sempre fica por último. Eu sou assim, como quase meio mundo, nesse rito misterioso de querer sofrer primeiro. Por quê? Por que, se tens o sol e a lua por gratuidade? Amores, um amor, louco para te fazer feliz na hora em que chega cansado. Música de monte, batida de monte, pra todo corpo que sacoleja a alma desbotada. Afagos, olhos enternecidos, carência de mais, às ruas, à procura, à doçura, num simples “Muito obrigado”.
Começo a entender que o tanto que nos falta são os monstros que rabiscamos. É o que arrefece, o que fenece, envenena. Se não me tem faltado à luz do dia como a meu próximo; o dom de sonhar, doce como o sonho. Se ao acordar tenho o direito de mudar e decidir ser feliz, sem juiz. Nos dias que nos chamam da janela, céu azul, dá pra pensar na inocência dos passos calados. Se tiver sorte, muita sorte, acordará ao lado de quem ama, e saberá que a sorte mostra os dentes num sorriso breve.
Parei por acaso, no ocaso. Parei por descuido, por desatenção, menos direção. Parei por que tive medo, quem dera antes fosse assim. Foi aí que andei reparando nas trivialidades que sempre estão no mesmo lugar. Escondidas, por querer, arbitrariamente. Lindo é achar graça de novo, redescobrir a graça de que dependemos. Na cor da mesma paisagem, no ronronar do mesmo gato, no adereço da mesma pessoa, no gelo do mesmo sorvete. Vida é isso: redescobrir.
Andei cheio de coisas,
Por fazer ou ser.
Contudo, nada me valeu,
Valeu-me ser…
Simples, modesto, um singelo que só.